Cyberpunk 2020

Augusto Gaidukas
11 min readMar 29, 2021

William Gibson abre o seu Neuromancer — o primeiro da Trilogia Sprawl, na qual um quarentista rumina sobre como será o futuro tecnológico da humanidade, ou melhor, o futuro humano da tecnologia — dentro de um bar. O protagonista, Henry Case, um hacker, integrado na ordem da marginalidade dos protocolos de rede e dos IPs encriptados por um proxy por ter roubado seu último empregador, precisa realizar serviços escusos em troca da regeneração de seu sistema nervoso central biônico, o qual foi danificado em punição por seu crime.

Deambulando nos limites da consciência e do que é real ou digital, há um convite na obra para que nós aceitemos que o virtual também é real e que reconheçamos que a extensão digital nos anos de efervescência da computação — os anos 80, quando a obra foi escrita — não faz parte da máquina, mas de nós mesmos, ao ser um ambiente de extensão da nossa própria mente quando somos capazes de exportar e importar ao ciberespaço, numa grande convergência virtual, nossa cognição voluntária.

Num Matrix menos nojento, em que não há necessidade de plugarmos nosso tronco cerebral à CPU para comungar nosso cérebro à rede, Neuromancer é uma romance desagradavelmente real e provocativamente determinista, no qual o futuro digital da humanidade é anunciado — não como uma profecia, mas uma sentença. Para além dos temores de Ted Kaczynski — o terrorista Unabomber — , em que nos tornaríamos escravos degenerados e semivegatativos da tecnologia, esta simplesmente ajudou o ser humano a tornar-se mais mesmo do que ele é, dando-lhe liquidez digital para realizar a colheita de todas as informações que lhe circundam.

As inegáveis semelhanças e referências dessa obra-prima contemporânea e o recém-lançado Cyberpunk 2077 (CD Projekt Red, 2020) pautam o que parece ser não um jogo futurista desenvolvido utilizando muitos pixels e tons de neon, mas um simulador da realidade que viverão nossos netos na vida adulta.

V., o protagonista editável de Cyberpunk: 2077. Gentilmente cedido por Yuri Nogueira.

Ambientado em Night City — uma cidade-modelo, desenvolvida por um visionário de nome Richard Night, o qual fetichizou uma cidade inteligente e automática, uma espécie de Pequim planejada — , a qual possui elementos inúmeros de megalópoles como Tóquio, Nova Iorque, Hong Kong e mesmo São Paulo (com bairros do jogo sendo habitados por indivíduos com nomes de língua portuguesa), a experiência da cidade infinita com uma segunda realidade sobreposta, a computacional, faz o jogador sentir-se condenado a pertencer ao cyberuniverso existente no jogo, o qual, muitas vezes, controla mais o mundo real do que o contrário.

Distrito de Pacifica. As favelas de Cyberpunk: 2077 são fortemente influenciadas pelas shanty towns da Índia e Sudeste Asiático.

A parte mais relevante da cidade é Watson, um local outrora rico e desenvolvido, e que hoje depara-se com bizarra desigualdade entre os interesses corporativos japoneses reinantes na região, a miséria e marginalidade acachapante de boa parte de seus habitantes e V., que habita desde os arranha-céus do centro financeiro da cidade até o deserto que fica a leste, onde nômades vivem como beduínos e parecem ter saído do meio-oeste estadunidense dos anos 70 com suas caminhonetes, trailers e revólveres.

É neste ambiente aterrorizantemente legítimo que o — em todo caso, marginal — protagonista deve sobreviver.

Uma neurodistopia cibernética

Em vias de obtermos a cura definitiva para o câncer e erradicarmos o HIV do organismo, um dos horizontes científicos da nossa era é a fronteira entre a neurociência computacional e a neurologia: a interface cérebro-máquina. A neurologia, médica, não conseguiu acompanhar a neurociência, matemática, com seus modelos físicos e precisão tomográfica, continuando presa a seus axônios e dendritos: o nosso primitivo cérebro biológico, que não veio com entrada USB para ser conectado ao computador. O ser humano não foi capaz — ainda — de sincronizar seu circuito neural com o da máquina que, embora seja construído sobre a mesma lógica — o ligar e desligar dos nossos neurônios não é diferente dos 0 e 1 do computador — , consegue apenas apreender a máquina através da experiência sensível e esta, em contrapartida, nos apreender com os comandos que lhe executamos com nossas mãos. Ainda não foi possível coordenar os impulsos elétricos do encéfalo diretamente com a máquina, de maneira que consigamos, por exemplo, projetar numa tela uma imagem que conseguimos imaginar, ou gravar uma lembrança de infância num arquivo mp4.

Esquema de uma rede neural. Tem-se um terminal de entrada (input), de saída (output) e interconexões entre os dois (layers), que tornam a conectividade entre os dois terminais uma rede probabilística fatorial. Neste caso, temos 768 possibilidades de entrada e de saída, de maneira que um sinal no terminal de entrada possa ser processado de 256 maneiras diferentes. De forma rudimentar, é assim que o cérebro funciona, mas com neurônios no lugar das bolas amarelas. O funcionamento neurológico pode ser matematicamente definido dessa forma.

Em Cyberpunk: 2077, a intimidade da consciência é uma formalidade. Plugando-se a computadores com acesso a redes remotas ou mesmo entre indivíduos, é possível que um veja tudo que a mente do outro contém, como suas experiências e memórias e, em alguns casos, instalar programas que tornem possível controlar a psiqué do conectado; ou mesmo malwares que provoquem um curto-circuito no sistema operacional instalado no cérebro.

Ainda, existem implantes ópticos que transformam a experiência visual numa realidade aumentada, sendo possível acessar em tempo real dados informacionais sobre o que se vê e manipular objetos com conexão à internet que você possa hackear.

Implantes neurais modernos que potencializam a sensopercepção; braços mecânicos; próteses ópticas que são câmeras; marca-passos que controlam o desempenho cardíaco; anabolizantes que aumentam a massa muscular; drogas que induzem do sono à psicose; óculos de realidade virtual que nos permitem engajar em qualquer atividade, de uma guerra a sexo com uma modelo virtual e imaginária.

Temos, em Cyberpunk, nossa realidade elevada ao quadrado, com nossos desejos sendo apenas atendidos: a possibilidade de editarmos livremente nossa aparência (que hoje depende de cirurgias plásticas); a possibilidade de melhorarmos nosso desempenho físico ou sexual (que hoje depende de esteroides e viagra); o acesso imediato a todas as informações existentes direto do nosso cérebro (que, hoje, reside em nossas mãos através de smartphones); a mimetização de uma realidade que não existe, através das neurodanças (hoje, possíveis pelos VRs e bem retratadas em cinemas 4D).

Há uma permanente tensão sobre a interface cérebro-máquina: num mundo em que a máquina tornou-se parte da humanidade e a humanidade dela, perdem-se os limites do que virtual e do que é real. Hoje, ainda é possível puxar o computador da tomada e ficar offline. Quando vemos a imagem de outrem via Skype, sabemos que aquilo é uma filmagem sendo transmitida em tempo real. No futuro, ou melhor, em CP, a carnal conjunção entre ser humano e hardware também casa consciência a software: a separação entre mim e a CPU que opero deixa de existir.

O “Eu” de Cyberpunk é a convergência da consciência da humanidade. A minha teoria do conhecimento baseia-se nisso, e eu devo tratar dessa epistemé humana em ocasião oportuna.

Não existe ação sem a presença da máquina; não existe reação fisiológica, espontânea, legítima, biológica, sem que um programa esteja coordenando ou mesmo controlando. Esse permanente estado de psicose cibernética, que faz o jogador susceptível a todo tempo a um hack de um trilha-redes ou mesmo à sua morte ao baixar um vírus em seu próprio sistema operacional, é o que torna Cyberpunk 2077 mais cru do que nós mesmos poderíamos desejar. O superlativo dessa dança neural é o cerne da obra: a exportação da consciência.

Como num transplante de cérebro, uma das tecnologias retratadas na obra — chamada Relic, que é roubada pelo jogador no início da história — contém dados informacionais conscientes de uma pessoa morta; no caso, Johnny Silverhand (Keanu Reeves), morto em 2023 pela mesma corporação que possui sua mente digitalizada.

Não apenas informações sobre memórias, emoções ou habilidades motoras, o caco (como são chamados os devices de dados no jogo) contém a pessoa de Silverhand que, ao ser ligada a um reprodutor (no caso, o sistema neural artificial da protagonista), assume vida própria, com cognição voluntária e livre-arbítrio, como se tivessem extraído sua consciência e a tivessem posto em outro corpo.

Dispensando os arcaicos neurônios e células da glia, um circuito suficientemente tecnológico torna possível a reprodução de uma inteligência outrora natural, mimetizando o Eu daquela mente, como se o espírito da pessoa ali estivesse, e interagisse com o mundo a sua volta. A pergunta é: essa consciência, embora aja fielmente ao que fora a pessoa de carne e osso, é a pessoa, mas em estado digital? Pode-se considerar que houve uma continuidade artificial da vida daquele indivíduo, ou, num universo no qual a consciência possa ser reproduzida pela máquina, há ali uma simulação computacional de IA humana?

Neurodança: uma reprodução jogável da realidade in-game.

Relacionando-o a seus pares, como 2001 e Brave New World, Cyberpunk: 2077 está longe das megadistopias, nas quais é possível a viagem no tempo e na velocidade da luz; onde o Homem atingiu um estado de coisas tão avançado e um conhecimento tão pesadamente insuportável que ele conhece a transcendência após um catarse. Em vez disso, CP77 nos apavora com um filme de terror ofuscante, ao qual nós somos inevitavelmente vizinhos e caminhamos a passos largos para concretizar. Ele nos contempla com essa neurodistopia, em que nossa sanha de controle informacional e domínio da natureza torna nós mesmos gado controlado por quem tem mais poder: no futuro, a Arasaka e a Militech; e hoje, o Google e o Facebook.

Cyberpunk é a distopia do agora. Ele traz meramente uma realidade aumentada, na qual o domínio tecnológico da mente sobrepuja a capacidade da psiquiatria de identificar o que é patológico — ou o que é alucinação e o que é verdadeiro — , degenerando todos os indivíduos, inclusive o próprio jogador, em internos de um sanatório — que é Night City — , cada um com seu transtorno mental: de toxicômanos e parafílicos a cyberpsicóticos.

De volta à realidade, ou: everything is Cyberpunk

Com 12 milhões de habitantes, a cidade insone ainda é uma Babilônia para seus habitantes e para as pessoas de fora. Poderia ser Night City, mas é a cidade de São Paulo.

A determinada altura, enquanto se imerge mais e mais na atmosfera de Cyberpunk 2077, não se é mais possível saber se está jogando vídeogame ou se está assistindo um filme recente. Você dirige seu carro inteligente e potente, desce dele num point para uma festa, olha seu celular para checar mensagens do trabalho ou da paquera, é checado digitalmente na entrada do clube, faz check-in, ganha uma comanda eletrônica no seu pulso e fica entregue à uma festa de substâncias fluorescentes, álcool, vapores e muitas pessoas em roupas histriônicas de cores psicodélicas, usando smartwatches, tirando fotos, usando o flash do celular para encontrar coisas que perderam no chão, brigando, vomitando, perdendo a consciência e arranjando companhia para a madrugada. Isso não é uma fase de Cyberpunk, mas uma experiência comum de um jovem qualquer.

À primeira vista, a experiência eighties (80’s) do jogo causa um pequeno estranhamento com a junção do chip e do cromo nas pessoas; no entanto, conforme se avança no gameplay, e quanto mais você se acostuma com as próteses, as órteses, as lentes, a indecência, a displicência, a perda do pudor no meio digital, o Estado policial, a corrupção corporativa e pública, a violência, a prostituição, a submissão pornográfica dos indivíduos ao dinheiro e ao poder, a profanação e naturalização da nudez e do sexo, o hedonismo imediatista de quase todo habitante de Night City e a miséria absoluta de quem vive as suas margens — como os infinitos moradores de rua e transtornados mentais que vagam pelos becos do centro — mais você percebe que o jogo é apenas uma simulação da realidade. A atmosfera dos carros quadrados e a combustão não são um tema, mas apenas um resquício de um tempo que já se foi e da perene pobreza que acomete o ser humano: enquanto alguns andam em seus veículos aéreos, outros dirigem carangas de 40 anos de idade.

Hotel Unique, em São Paulo. Mais um lugar que imita ou jogo, ou que o jogo imita, ou os dois.

Enquanto isso, fora das neurodanças do jogo, nossa distopia ganha forma e cor. Nossa intimidade pessoal exposta na rede, poluição sufocante, escassez de água, desigualdade gritante e uma pandemia mundial são o cenário de Cyberpunk 2020, que é o ano em que se inaugurou essa nova era em que estamos vivendo: controle absoluto das pessoas pelas autoridades e pela mídia, lavagem cerebral ideológica, consumismo como religião e o prazer como ídolo são o ópio (ou o ecstasy?) do homem moderno.

O aceleracionismo pandêmico

A pandemia do novo coronavírus (que, a esta data, completa cerca de um ano) não provocou mudanças drásticas, mas catalisou transformações que já se encaminhavam, mesmo que a passos lentos, na aldeia global.

Existe uma corrente filosófica moderna tardia que defende que o capitalismo é imparável, a despeito de governos socialistas ou centralizadores anti-mercado; e que a integração homem-máquina é inevitável, de forma que a humanidade esteja condenada a um futuro ultracapitalista e mecanizado, ao contrário do homem primitivo, que não conhecia tecnologia ou sistemas de produção.

Tal corrente filosófica tem o sugestivo nome de aceleracionismo, e o modelo de aceleracionismo é a China: um governo comunista que impôs o sistema capitalista mais efetivo do mundo, que é o capitalismo de Estado chinês, em contraponto ao caduco modo de produção soviético, no qual não havia cálculo econômico e, portanto, estaria fatalmente arruinado até que o sistema de escravidão coletivista ruísse.

A humanidade já se encontrava encaminhada ao transhumanismo e ao pós-capitalismo; o que não imaginávamos era que nós, que nascemos da carne e crescemos sem nenhum dispositivo conectado a nós, teríamos que nos adaptar tão rapidamente e agilmente ao que o SARS-CoV2 nos obrigou.

A veloz adaptação do real ao virtual, criando uma verdadeira aldeia global virtual, na qual o mundo digital também pode ser considerado “da porta para fora”; um segundo mundo totalmente organizado, hierarquizado e com autonomia e funcionamento próprios trouxe o aceleracionismo até nós e nós até ele: me aponte um trabalhador urbano que não depende do digital, e eu lhe mostrarei alguém que não está completamente integrado à rede de serviços e direitos da sociedade, como um catador de recicláveis. É a única profissão que eu consigo pensar que não dependa em algum grau da tecnologia — até no campo a engenharia e a tecnologia de informação já chegaram, e estão tomando território rapidamente.

Reuniões virtuais, criptomoedas, serviços virtuais, universalização da língua inglesa como a única possível de ser falada; até mesmo clínicas virtuais, onde se pratica 100% a medicina digital e a telemedicina já existem. O que nos separa do matrix é meramente a realidade virtual, a qual não precisamos estar sedados para acessar.

Num laboratório sombrio de um futuro tangível, Cyberpunk 2077 não é premonitório; em vez disso, ele traz uma mensagem clara de para onde a humanidade se encaminha, ou já se encaminhou, para nunca mais voltar.

O ser humano, como previu Aldous Huxley, não será destruído pelas coisas que odeia, como a guerra ou a peste; mas pelas coisas que adora, como o prazer, a preguiça e a alienação.

Resta a nós aceitar o futuro. Ou não.

I am not?

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